Com fama de diretor rígido e exigente, um artista de teatro no sentido literal da palavra, Antunes Filho, o respeitado e importante homem do teatro brasileiro.
Sempre tive interesse pelo seu processo criativo e modo de tratar o teatro. Vários foram os importantes atores que passaram por sua supervisão. Entre eles destacam-se Luis Melo, Giulia Gam, Gloria Menezes, Paulo Autran e muitos outros. Muitos importantes espetáculos fizeram sucesso com sua direção, o mais notável foi Macunaíma da obra de Mário de Andrade de 1978. Aqueles que desejam enveredar pelo teatro de forma séria e inteligente, com pés fincados na crítica do trabalho do ator como artista criador e consciente de sua função recomendo passar pelas idéias de Antunes Filho.
Portanto apresento uma entrevista feita por Miguel Arcanjo Prado com diretor do CPT - Centro de Pesquisa Teatral com sede no SESC Consolação em São Paulo. Na entrevista Antunes Filho fala de seu mais novo espetáculo. "Leiam com toda a calma do mundo"
Antunes Filho [abrindo a entrevista] – Fale à vontade, Miguel!
Miguel Arcanjo Prado – Antunes, por que você resolveu montar Nossa Cidade?
Antunes Filho – Resolvi montar porque é uma peça que
eu ia começar como ator, como Osmar Rodrigues Cruz [1924-2007, diretor e
crítico teatral], mas a peça não foi montada. Quando eu a vi, era feita
por estudantes, achei incrível, me comoveu. Por isso, eu queria fazer
com o Osmar. Mas foi adiando, adiando e tchau... A peça é
extraordinária. Pega a simplicidade de gente, de pessoas, das coisas
mínimas, pequenas, e dá um relevo muito grande.
Em que este texto norte-americano de 1938 dialoga com o Brasil de hoje?
A peça dialoga na dramaturgia que eu fiz paralela, ou cruzada. Tem a
peça do Thornton Wilder e a dramaturgia do CPT com a qual esta se cruza
permanentemente. É como se fosse um diálogo nosso com o Thornton. É uma
reconstrução. Aí está a chave do espetáculo. A peça dialoga com o mundo,
não só com o Brasil e São Paulo. Tem valores e ideologias, do começo do
século 20, de como foi constituído aquilo e como a coisa resulta no
mundo hoje em dia. O espetáculo é crítico e bastante irônico, mas muito
amoroso, simultaneamente. É nossa formação cultural também, do Brasil lá
atrás, com a coisa do cinema americano, etc e tal.
Você tem fama de ser muito rigoroso. Os atores têm medo de você?
Não. Agora, nós estamos rindo juntos [risos].
Mas por que você ficou com essa fama?
Sabe por quê? Ontem, eu estava falando que a profissão mais linda do
mundo é a profissão do ator. Eu acho. Porque ele pode viver mil vidas. É
mitopoese para ele estar sempre no inconsciente coletivo. O ator navega
nos inconscientes coletivos do mundo, entendeu? Então, ele pode ser o
que quiser, como ele quiser. E os caras, quando vêm para o teatro, não
vêm com essa ideia, vêm com a ideia de fazer teatro só para ganhar
dinheiro. E sou muito exigente! Muito bem. E essa frase eu fiz antes de
ontem: se eu critico os atores terrivelmente, os atores do teatro aí
fora, como é que eu não vou criticar os meus? Eu critico muito os meus.
Às vezes, eles pensam que eu estou criticando só os lá de fora; não, eu
estou criticando os meus, permanentemente. Quero que eles tenham uma
profunda técnica. Nós temos de fazer o produto e não ficar somente com
aquilo que vem da terra. Eu quero que se produza. E o ator tem de
produzir. O ator tem de ter técnica, técnica, técnica [enfático] De boa
vontade eu estou com o saco cheio de ver. Eu quero ver é técnica! Porque
se você não tem técnica, você explicita outra coisa, não aquilo que tem
de explicitar, e nem se dá conta. Não quero mais ator como matéria
prima, sabe? Eu quero ator como produtor, que pegue a matéria prima e
faça alguma coisa com a matéria prima. Chega do pré-sal!
É verdade...
O que nós gastamos com o refinamento lá fora, bicho? A nossa dívida é
gigantesca nisso! Vai pilhar sapo, pô! Se bem que pilhar é melhor do que
empilhar sapo...
Antunes, para onde o vai o teatro brasileiro?
A pergunta não é “para onde vai o teatro brasileiro?”. É “para onde vai o
teatro no mundo?”! Esta que é a questão. Está uma falta de dramaturgia,
os atores estão mais preocupados só com dinheiro. Aliás, o mundo está
preocupado só em correr atrás da grana. Se matando, se jogando, se
suicidando. Essa história de consumo está enchendo o saco, pô. Não
aguento mais! O ator também vive isso de uma forma violenta. Lá se foi o
modernismo, já se foram certos valores, não tem mais aquilo. É pé no
acelerador e vamos nessa!
Você acha que o Danilo Santos de Miranda [diretor regional do Sesc São Paulo] seria um bom ministro da Cultura?
Acho que ele seria genial como ministro da Cultura, mas eu não quero.
Quero que ele fique com a gente aqui no Sesc. Aqui ele pode navegar
sossegado. Lá em Brasília, ele vai ser comido por todos aqueles tubarões
mensalistas, né? Haverá muita gente enchendo o saco dele. Aqui não tem
isso.
Você já falou certa vez em ter peixes-guias sempre entre seus atores... Quem é o atual?
É ele [aponta para Leonardo Ventura, que acompanhou a entrevista]: o
Leonardo Ventura. Ele é quem está sendo hoje. Ele faz muito bem o
narrador em
Nossa Cidade.
De onde veio elenco de Nossa Cidade?
Metade do elenco veio do CPTzinho [curso de introdução ao método de
Antunes Filho no Sesc Consolação] deste ano. A outra metade foi duro de
conseguir. Por isso, foi muito adiada a peça. Porque foi muito difícil
encontrar tipos aproximados para os personagens. A peça, apesar de ser
épica, vive de um “naturalisminho” que necessita de tipos próximos do
pai, da mãe, do sobrinho [risos] Precisa de certas características. Eu
tentei fazer um espetáculo com esses garotos que se passava no Oriente
Médio e ficou uma porcaria. Eu desisti! Nunca mais! Não dá para fazer a
olho mais. Você sabe, não somos uma companhia profissional, é uma
cooperativa, tem de se virar com o que tem. Atores profissionais, como o
Mateus Carrieri, têm de entrar com a boa vontade. Foi um sofrimento
encontrar tipos aproximados, e não só aproximados, mas que soubessem
também andar, falar, ouvir, essas coisas [risos].
E como foi a entrada do Mateus Carrieri no CPT?
O Mateus era para ter trabalhado comigo e não conseguiu. Ele se
arrepende disso amargamente até hoje, ele mesmo faz questão de dizer.
Acho que diz para me agradar. [em tom de brincadeira] Não fez a peça
comigo e saiu para ficar por aí, rodando bolsinha nas esquinas...
[risos]
Então, a volta dele é como a de um filho pródigo?
É isso aí, o Mateus é um filho pródigo! E bem pródigo.. [risos].
Qual a importância do Emerson Danesi [braço direito de Antunes no CPT]?
Sem ele, eu não poderia ensaiar. O Emerson é o respaldo, é o meu
escudão. É o escudário!... [mudando de assunto] Você quer ver o cenário?
Quero.
[Antunes mostra a sala de ensaio vazia, com cortinas pretas ao fundo] É
exatamente isso aí que você está vendo, Miguel. Esses panos pretos aí.
Basta de alta tecnologia! Eu estou de saco cheio desses musicais da
Broadway. Dessa alta tecnologia, porque quero ver teatro e fico vendo
outra coisa, tendo experiência. Se quisesse ver lâmpada e fio eu iria a
um museu industrial. Eu estou cansado disso! Quero teatro, quero o ator
de volta à sua função primitiva...
Você acha que está todo mundo saturado disso, Antunes?
Pelo amor de Deus! O público está de saco cheio da tecnologia. Isso está enchendo o saco. O que tem nessa peça,
Nossa Cidade,
é exatamente este recado. Por isso, ninguém vai assistir duas vezes só
essa peça. Vai assistir mais. Ela me deu muito trabalho e eu pude
aprofundar uma porção de coisas, os signos.
Você está apaixonado pela peça?
Eu gosto imensamente dessa peça. Eu me comovo sempre que vejo. E me
comove esse embate Thornton Wilder com o que fizemos, que é discutir uma
ideologia americana para o mundo. É muito intrigante.
Seus ensaios foram todos secretos?
Não deixei ninguém ver o ensaio, nem meus amigos. Quero pegar vocês de
surpresa e ver o que acontece. Estou jogando minhas fichas todas neste
espetáculo. As pessoas pensam que eu simplifiquei. Eu estou
simplificando sempre o teatro. Quanto mais simples melhor. Mas a
complexidade está aí. Do ponto de vista de colocação de cena é um dos
espetáculos mais simples e bonitos que eu fiz. Se quiser discutir
semiologia, tem aí espaço para discutir à vontade. E tem coisas
curiosas: como é que corporifico o vazio, o silêncio, a ausência. Isso é
interessante.
É complexo, então.
Tem uma complexidade, porque são duas peças. Tem ele falando, o
Thornton, e temos nós falando. Ele viveu em uma época em que ele não
tinha o instrumental cultural que temos hoje para discutir sua
realidade. Assim como discutimos os alvores da Republica Brasileira em
Policarpo Quaresma [espetáculo de 2010], agora estamos discutindo os
alvores de uma ideologia que vai se propagar pelo mundo, e como! Isso
está sendo colocado no espetáculo. É interessante também que o narrador
do Thornton é um ser passivo, e o nosso é ativo. Ele é o homem que vem
de longe, teve uma experiência imensa e vai contar sua experiência
através do texto do espetáculo, e ele conta as experiências da vida dele
junto. E isso dá um embate muito rico.
Dá para ver que a peça mexe com você, Antunes.
É um espetáculo comovente. É coisa rara isso em ume espetáculo meu. Acho que só
O Diário de Anne Frank
[espetáculo de 1958] era comovente assim. [fica com os olhos cheios de
lágrimas]. É um espetáculo que mexe com minha sensibilidade, é
inteligente, é um dos mais complexos espetáculos que fiz. Eu me comovo
até nos ensaios. E você sabe que eu não gosto muito de ficar vendo
ensaio. Mas deste eu vejo tudo. Neste ano, que estamos comemorando o 35°
aniversario de
Macunaíma [montagem emblemática de Antunes de 1978], este espetáculo é importante. Estou colocando todas as fichas em cima.
Esse recado você buscava desde que pensou a peça no Oriente Médio que não deu certo há dois anos?
Aquela da molecada fazendo muçulmano não dá! [risos] É muito difícil
para mim encontrar uma peça com o que eu quero dizer no teatro; quero
mostrar os problemas do homem mais profundos. É muito difícil você
encarar isso. Por isso, eu fui para Oriente Médio e depois para
Nossa Cidade.
Estava buscando algo mais abrangente, não só individual e particular.
Quero dizer coisas mais amplas no teatro, sem fazer molecagem,
compreende? Com responsabilidade. Não é simplesmente ver
Nossa Cidade
bonitinha. Tem isso, que é comovente, mas também tem outras coisas. É
um prato recheado para a plateia, é uma hora e meia para se abastecer
até o Natal e o Ano-Novo [risos].
Antunes, como você recebeu a saída do [ator] Lee Taylor do
CPT [que criou o Núcleo de Artes Cênicas do Centro da Cultura Judaica de
SP]?
Quem?
O Lee Taylor.
Ah, ele não saiu.
Não?
O CPT se espalha. É uma mancha de óleo. Você vai no Nordeste, na
Bolívia, tem gente do CPT. Ai, meu deus do céu! Você vai para Nova York,
também tem. Sempre tem por aí gente que fez o CPT.
Mas pergunta que todo o teatro brasileiro quer saber é: você tem mágoa do Lee?
Já inventaram que eu tinha mágoa com o Luiz Mello, com a Giulia Gam, com
a Gloria Menezes, com o Paulo Autran, e essa aí foi forte... Com o
Jardel Filho... [mudando de assunto] Olha, eu aposto que as pessoas vão
gostar muito de ver essa peça.
Antunes, nesta sexta eu fui ver o Vestido de Noiva
dirigido pelo Eric Lenate, que também saiu do CPT. Os atores gritavam e
eu sei que você detesta grito no teatro. Acha que essa é uma provocação
de discípulo ao mestre?
Ele tem a maneira dele, o jeito dele.... O Lenate trabalha como ator nessa peça aqui no Sesc [
Nosferatu].
Ele falou que quer sair do escuro, mas ele não pode sair do escuro
[Lenate vive um vampiro na obra]. Ele está ótimo, o problema é que a
peça ele fez em um mês... Agora, essa aí que você foi ver,
Vestido de Noiva,
dele como diretor, eu não vi. Eu precisaria ver para saber por que é
que está todo mundo gritando desse jeito que você falou [risos].
Então, para acabar: como fica o Prêt-à-Porter [tradicional série de cenas curtas desenvolvidas pelos atores que trabalham com Antunes]?
Por enquanto está meio parado.
Nossa Cidade é esse novo rumo
que te falei, que eu estava procurando, primeiro com os árabes e agora
com o Thornton. É um caminho novo. Não sei se volta o
Prêt-à-Porter. Eu só sei é que é preciso dar vazão a coisas novas.
O diretor Antunes Filho posa com Leonardo Ventura (à esq.), protagonista
de Nossa Cidade e seu novo pupilo: "É preciso dar vazão a coisas
novas", declara
Nossa Cidade
Quando: Sexta e sábado, 21h; domingo, 18h. 90 min. Temporada de fim indeterminado
Onde: Teatro Anchieta do Sesc Consolação (r. Dr. Villa
Nova, 245, Vila Buarque, Metrô Santa Cecília, São Paulo, tel. 0/xx/11
3234-3000)
Quanto: R$ 32 (inteira); R$ 16 (meia-entrada): e R$ 6,40 (comerciários e dependentes)
Classificação etária: 12 anos
Fonte: http://entretenimento.r7.com/blogs/teatro/